Uma pausa: Caso Suárez-Evra (com update)

Fiz um longo post sobre aspectos jurídicos do caso Evra-Suárez pra postar no blog da torcida do Liverpool do qual participo, o http://liverpoolbrasil.com/ , se alguém tiver tempo livre e paciência:

Antes de mais nada é preciso estabelecer uma linha, e que esta linha fique muito clara: Racismo é um crime terrível e absurdo, um resquício de uma grave injustiça que felizmente não é mais aceita como sendo válida na maior parte do mundo. A questão em análise não tem NADA a ver com racismo, mas com justiça e processo. Eu não conheço Luis Suárez, não sei dizer se ele é uma boa pessoa, se é racista ou não. O que eu sei são os fatos do processo, e só a ele que pretendo me referir.

Mais uma objeção: Eu sou torcedor do Liverpool F. C., e isso inclusive me faz ter certeza absoluta que o clube é muito maior que o jogador, assim como ter a plena consciência que nenhum jogador racista deveria usar a camisa vermelha do time de Merseyside. É impossível garantir neutralidade, mas me esforcei – muito – para ser o mais transparente possível, inclusive com número extenso de referências ao documento original.

Dito isso, eu acredito que a decisão é, no mínimo absurda. Eu não tenho como comprovar que Suárez não foi racista. Mas meu argumento se baseia no fato de que tampouco poderia provar Evra ou a FA o inverso.

A decisão pode ser lida na íntegra aqui, vou copiar e colar os trechos aos quais me refiro. Posso estar enganado em algum ou alguns pontos, e para abordar esses pontos espero a colaboração do leitor para contra-argumentar. Peço encarecidamente que não percam o tempo (meu e dos demais leitores do post) com comentários odiosos, tanto ao Liverpool quanto ao Manchester United e seus jogadores. Esta é uma questão técnica e devemos deixar um pouco nossas paixões de lado.

Vou utilizar o símbolo § para designar parágrafos. Quando, por exemplo, eu faço referência a (§203) estou mencionando o parágrafo 203 do relatório. Perceba que não é uma questão de páginas, mas de parágrafos mesmo. Dividi entre fatos e direitos, quem já se julgar conhecedor dos fatos pode pular logo para os direitos.

 

SOBRE OS FATOS

O contexto é de conhecimento pleno: em uma dividida na área lateral do campo, no clássico Liverpool e Manchester United disputado em Anfield, Luis Suárez dá uma entrada dura para roubar a bola de Patrice Evra (§58), capitão do time visitante. Evraficou no chão, pois a pancada fora em um joelho em que ele tem um histórico de lesões. Em outra jogada a seguir, Evra interpelaSuárez (§86) em espanhol (§87), perguntando qual o motivo daquilo. Segue-se uma troca de farpas (§86 a §96). Entre a disputa verbal houve um momento em que Suárez beliscou Evra em seu cotovelo (§95. É interessante notar que, segundo o relatório, no mesmo parágrafo, Evra só se deu conta que havia sido tocado no momento da audiência. Voltaremos a este ponto depois). Logo seguido o entrevero, o árbitro Marriner, chegou ao local da disputa para acalmar os ânimos (§101). Evra testemunhou depois ter dito ao juiz que foi insultado (§103), ao que o árbtiro não fez nenhuma referência (§105). Ao final do jogo Evra relata ao árbitro queSuárez dirigiu-lhe insultos racistas. Após o jogo a FA declara que abrirá inquérito para investigar a questão.

Há alguns apontamentos sobre as divergências sobre testemunhos do parágrafo 203 em diante. Os fatos aqui citados são incontestes. Ambos Suárez e Evra concordam com essa sequência narrativa.

A divergência mesmo é relatada entre os §86 a §96. Vou citar separadamente as duas histórias. Lembre que são três momentos: a falta na lateral, a discussão na área e a conversa após a advertência do juiz.

Segundo Luis Suárez, a sua primeira entrada foi normal. Na segunda jogada, Suárez alega ter sido interpelado por Evra, em algum comentário que ele não conseguiu entender (§88). Suárez concorda que nesse momento Evra lhe perguntou o motivo de seu chute na falta anterior (§89). Suárez diz que respondeu ter sido uma falta normal (§91). Evra teria então dito “você me chutou, então eu vou te chutar de volta”, o qual o uruguaio respondeu imitando um pato fazendo “quack” com a mão, como que dizendo que a reclamação de Evra era exagerada (§93). Após o apito do juiz, Suárez diz que Evra declarou que não queria proximidade, dizendo “Não toque em mim, sul-americano” (§104). Em resposta a isso, Suárez admite ter perguntado: “Porquê, negro?” (§104, idem). O árbritro se aproximou (§105), e depois se afastou (§107). Suárez não entendeu bem o que o árbitro disse, mas presumiu se tratar uma questão de “deixa disso” e que o juiz teria sugerido que ambos fizessem as pazes (109§). Após isso Suárez teria se aproximado novamente deEvra, falando supostamente (enfatizo que é apenas uma suposição, com base no testemunho de Luis) palavras de reconciliação e passando o braço ao redor do pescoço do jogador francês. Em resposta a isso, Evra repeliu imediatamente o uguruaio. O juiz então, provavelmente (segundo a FA, §108) observando a situação interviu novamente e pediu para que Suárez não tocasse em Evra. Aqui termina o relato de Suárez.

Agora, a versão dos mesmos fatos segundo Patrice Evra.

Na jogada inicial Evra ficou consternado pro Suárez tê-lo atingido em seu joelho, que, como já mencionado, tem histórico de lesões (§89), indo tomar satisfações com o jogador do Liverpool, em espanhol. À resposta “Porquê você me chutou?”, porém, Evra diz ter dito uma resposta diferente. O uruguaio teria dito “Porque tu eres negro” (§90). Nesse momento Evra interpretou o comentário como sendo “Because you are a nigger”, o que em português seria mais ou menos “Porquê você é preto”. Seria um sentido pejorativo. Sobre o uso da palavra “negro” falarei depois. Ao comentário de Suárez, Evra teria respondido: “Habla otra vez asi, te voy a dar una porrada”. À ameaça do francês Suárez teria respondido: “No hablo con los negros” (§92. Lembrando que Evra interpretou como sendo uma ofensa essa aplicação do termo espanhol “negro”). Imediatamente Evra respondeu com “Ahora te voy a dar realmente una porrada” (§94), ao quê Suárez teria respondido com “Dale, negro…negro…negro”, que seria como “Então tá, negro negro negro”. Em seu testemunho (posterior, frise-se), Evra disse que nesse momento Suárez apontou para sua pele, para sua cor, negra (§95), numa aparente tentativa de enfatizar seu ponto (esta é uma ilação minha, do autor do post, mas que parece condizente com o queEvra depôs sobre Suárez).

A FA nota (§99) que até este ponto, segundo Evra, Suárez teria utilizado a palavra “negro” cinco vezes: (“Porque tu eres negro”, “No hablo con los negros”, “Dale, negro…negro…negro”).

Após a discussão Evra alega ter corrido em direção ao juiz dizendo “ref, ref, he just called me a fucking black”, algo como “juiz, juiz, juiz, ele me chamou de um maldito preto” (utilizando a interpretação de Evra pro termo “negro”. Como Suárez não chamou Evra, segundo o testemunho do próprio francês, de “preto maldito”, acredito ser razoável pensar que foi um advérbio de intensidade). O juiz só respondeu pedindo para Patrice se acalmar, lembrando que estava sendo um ótimo jogo (§103). Após o juiz se afastar, Evratestemunha que Suárez passou o braço ao redor do seu pescoço, coisa que ele imediatamente repeliu. Diz que Suárez lhe disse algo de cujo teor ele não se lembra (§108).

Nos parágrafos §111 a §116 há o relato sobre os testemunhos em relação ao que se sucedeu no lance seguinte, em que Evra recebeu um cartão amarelo. Creio não ser relevante para questão, somente para destacar que o jogador francês ficou visivelmente consternado.

Além dos principais envolvidos, o relatório da FA conta ainda com depoimentos de vários jogadores.

No momento da discussão dentro da área estavam nas proximidades o goleiro do united, David De Gea, que inclusive é espanhol, Johnny Evans, e Dirk Kuyt, holandês (§98). De Gea testemunhou não ter ouvido sequer uma discussão, quem dirá um bate-boca. Kuyt, por sua vez, diz não ter ouvido o teor da discussão, somente que Evra parecia estar provocando Suárez.

Além desses, também foram ouvidos Ryan Giggs (§113-114) (na questão do cartão amarelo, somente); Valencia (§121), Hernanez (§122), Nani (§123) e Anderson (§124) (sobre o comportamento de Evra no vestiário). Alex Ferguson acompanhou Evra na denúncia ao árbitro (§127). Damien Comolli, um dos diretores de futebol do Liverpool, também se pronunciou (§136-138), especialmente sobre o que conversou com Suárez logo após o ocorrido. O técnico dos reds, Kenny Dalglish, também se pronunciou (§139-140), mas sem nenhuma informação adicional relevante.

O relatório possui ainda grande discussão sobre o emprego do termo “negro” na lingua espanhola, sobretudo na região do Rio do Prata, em que Suárez nasceu. A FA, por meio de seus especialistas, concluiu que o uso tinha um sentido racista (§179, §183 e §184), apesar de ressalvar sua construção estranha (§181-182), sendo artificial, e não natural para um falante nativo do espanhol.

Em síntese, como citado no §186:

The experts concluded their observations on Mr Evra’s account as follows. If Mr Suarez used the words “negro” and “negros” as described by Mr Evra, this would be understood as offensive and offensive in racial terms in Uruguay and Spanish-speaking America more generally. The physical gesture of touching Mr Evra’s arm would also, in the context of the phrases used, be interpreted as racist

A decisão da FA envolveu somente fatos trazidos nas alegações feitas durante o processo por todas as partes. Como declara expressamente o relatório no §216:

It is important to emphasise that the decision that we reached is that of the Commission alone, that it is limited to the Charge brought, and that it is based solely on the evidence and arguments presented at the hearing.

A despeito de ser (discutivelmente) o maior clássico do futebol inglês, não há provas de ordem visual de praticamente nada no processo. Entre as alegações, a única coisa que é provada no processo é o movimento dos jogadores e o sutil movimento do beliscão de Suárez em Evra. Somente isso. Não há qualquer relatório de leitura labial, nenhuma espécie de imagem que possa elucidar a questão. Só há um tipo de prova em todo o procedimento, fato inclusive aceito pela FA: os testemunhos apresentados pelos envolvidos. E, como já mencionado, basicamente só há dois atores que sabem o que se passou no âmago da questão: justo o ofensor e o ofendido. Somente Luis Suárez e Patrice Evra sabem o que falaram, já que não foi produzida no processo NENHUMA prova com nenhum registro de qualquer conteúdo de comentário racista. E mais, a única vez em que se tem uma razoável certeza de que Suárez fez algum comentário sobre a cor da pele de Evra foi naquilo que Suárez admitiu, ter dito “Porque, negro?” (§104). Com base nos testemunhos das partes a FA concluiu que Evra tinha um argumento sólido, e decidiu banir Suárez em uma suspensão de 8 jogos.

Além do juízo fundado nos testemunhos, a FA fez uma análise dos comportamentos dos jogadores durante seu depoimento. Enquanto Evra (§229-234) foi considerado uma testemunha impressionante (§231) por sua clareza e calma, Suárez (§235-237) foi considerado pouco preciso, sobretudo por seu péssimo inglês (§235). A favor de Evra pesou o fato de ser um jogador respeitado (§229) que inclusive capitaneou os times que joga, enquanto Suárez foi pelo menos respeitoso (§236).

Em seu relatório a FA não conseguiu ajuda substancial de imagens, como aponta no §238:

The footage was not of any real direct assistance in terms of what was said by Mr Suarez in the goalmouth. It was not possible to try and lip-read what Mr Suarez said largely because his face was obscured at the crucial moments, either because his back was to the camera behind the goal, or because his face was obscured by a camera fixed to the back stanchion.

A análise das imagens do lance é detalhada entre os §239 a §244, em que o comitê postula por meio da linguagem corporal o que foi dito na situação. Entre os §245 e §252 o relatório discute a possibilidade do beliscão (já mencionado acima) ser um ato pacífico, chegando à conclusão que era, na verdade, destinado a irritar ainda mais o adversário, como descrito no §248:

It was plain to us that Mr Suarez’s pinching of Mr Evra’s arm was not an attempt to defuse the situation. It could not conceivably be described in that way. In our judgment, the pinching was calculated to have the opposite effect, namely to aggravate Mr Evra and to inflame the situation. We infer that this was Mr Suarez’s intention. Mr Suarez’s face reveals hostility towards Mr Evra, the pinching is preceded by Mr Suarez looking Mr Evra up and down, and MrSuarez steps away having pinched Mr Evra as Mr Kuyt steps in to face up to Mr Evra.

Sobre a possibilidade de Suárez ter tentado assumir uma postura conciliatória, a FA declarou no §264 que:

The whole tenor of the players’ exchanges during this episode was one of animosity. They behaved in a confrontational and argumentative way. This continued at all times during their exchanges in the penalty area. Whilst Mr Evra is partly to blame for starting the confrontation at that moment, Mr Suarez’s attitude and actions were the very antithesis of the conciliation and friendliness that he would have us believe

E, no §266:

In our judgment, Mr Suarez’s use of the term was not intended as an attempt at conciliation or to establish rapport; neither was it meant in a conciliatory and friendly way. It was not explained by any feeling on Mr Suarez’s part that a linguistic or cultural relationship had been established between them or that the context was one of informal social relations. The video footage, when viewed in detail and when looked at as a whole, shows that the players continued their animosity throughout this incident. Their hostility is shown in their actions and demeanour before, at the moment of, and after Mr Suarez’s admitted use of the word

A despeito do fato de que, segundo os especialistas na linguagem do Rio do Prata (§265):

“in Rioplatense Spanish the use of “negro” as described here by LS would not be offensive. Indeed, it is possible that the term was intended as an attempt at conciliation and/or to establish rapport (see (ix) above).”

 

SOBRE O DIREITO

O argumento principal do comitê disciplinar da FA é que, enquanto Patrice Evra foi perfeitamente convincente em seu discurso (§268), Suárez falhou em esclarecer suas inconsistências (§267), como a do beliscão.

Para a FA, bastava comprovar que tais palavras ofensivas teriam sido proferidas para que a responsabilidade objetiva operasse (§389). Isso quer dizer, em outras palavras, que a intenção por trás do ato é irrelevante. Contanto que o ato (dizer palavras ofensivas) seja configurado, já existe motivação para punição:

We remind ourselves that the test for a breach of Rule E3(1) is an objective test. That means that it is for us to form our own view as to whether Mr Suarez’s words or behaviour were abusive or insulting. It is not necessary for the FA to prove that Mr Suarez intended his words or behaviour to be abusive or insulting. We are concerned with whether the words or behaviour were abusive or insulting when used in a football match played in England under the FA Rules

Então, bastava que isso ficasse comprovado, como a FA entendeu que se sucedeu no §392:

In total, Mr Suarez used the word “negro” or “negros” seven times in the penalty area. On each occasion, the words were insulting. On each occasion, Mr Suarez breached Rule E3(1). Accordingly, the Charge is proved.

No final do relatório o comitê aponta que o ônus de comprovação reside de fato na FA. A FA que deve provar que as ações queSuárez cometeu de fato ocorreram. Mas reconhece ainda que, por se tratar de um procedimento civil – no caso, não criminal  – não se aplicam as mesmas obrigações jurídicas. Não é preciso comprovar que houve de fato o ato, somente que seria plausível. Como diz o relatório (§453.2):

The burden of proof in this case is on the FA. The standard of proof is the flexible civil standard of the balance of probability. The more serious the allegation, taking into account the nature of the misconduct alleged and the content of the case, the greater the burden of evidence required to prove the matter.

Há várias questões a analisar na situação, mas manterei o foco em duas. A primeira seria: seria essa uma questão puramente civil? Paralelamente: somente o testemunho da parte ofendida é suficiente, para a FA, para confirmar racismo?

Por mais que a multa seja restrita às regras do jogo, e tudo tenha ocorrido somente no domínio esportivo, a alcunha de “racista”, que decorre naturalmente do fato de alguém ter cometido atos “racistas” (a despeito da FA ser enfática em dizer que não há provas que Suárez seja racista, somente que cometeu atos racistas) impõe um peso muito maior que um mero expediente administrativo. Envolve um dano considerável à honra e respeitabilidade de uma pessoa. É exatamente por esse motivo que no juízo criminal se exige certeza antes de condenar: por saber que uma condenação falsa pode destruir a vida de alguém. O princípio é muito simples: in dubio pro reo, na dúvida para o réu. Para se condenar alguém é preciso provas muito convincentes. O que nos leva ao segundo ponto.

A FA considerou a “possibilidade” de ofensa o suficiente para condenar Luis Suárez por racismo. O argumento de que se trata de uma questão de ordem civil não faz sentido, já que gera os mesmos impactos de uma decisão de ordem criminal, mesmo que sem restrição de liberdade. Nenhum testemunho de ninguém além de Patrice Evra atesta qualquer ato racista por parte de Suárez. Na única coisa que Suárez concorda ter feito, um único uso da palavra “negro”, há justificativas razoáveis para considerar que ele talvez possa ter razão (i.e. §265) – e, logo, merecer o benefício da dúvida. Ser Luis Suárez um jogador novato na Premier League, incapaz de se comunicar eficientemente em inglês, ter sido inicialmente provocado (“Concha de tu hermana”, § 87) em seu idioma natal (No qual ele tem pleno domínio e faz sentido que presuma que seu interlocutor, por ter selecionado esse idioma também o tenha), e respondido de uma forma que, ainda que tenha sido interpretada de forma pejorativa por Evra (como ele mesmo admitiu) tem uma possibilidade de compreensão inofensiva, são sinais de que o processo não foi exatamente equilibrado.

Talvez por força do crime de racismo ser tão odioso, e seu combate tão importante – a despeito do que pensa Joseph Blatter, presidente da FIFA – assim que a questão “raça” entra em campo parece que todos os comentadores pulam às conclusões e passam automaticamente a crer que o jogador precisa comprovar sua inocência. A lógica jurídica é o inverso, é justamente a acusação que precisa comprovar qualquer coisa que seja. É uma questão de inversão de valores presumir que o acusado deva demonstrar sua honestidade. E, ainda assim, a única voz acusatória é justo a da vítima. Mas Patrice Evra é capitão de seu time, um homem responsável e respeitado, ao contrário de um sul-americano famoso por ser expulso na Copa do Mundo.

Não é minha intenção vitimizar Luis Suárez. Não o conheço, não sei como ele é como pessoa ou cidadão. Mas o tratamento dado pela mídia – isso sem falar da FA, obviamente perdida no caso – é simplesmente vergonhoso. Claro que a defesa jurídica que Suárez teve durante todo  o processo também foi ridícula. Não demandaria mais que alguém com o mínimo de bom senso sobre o Direito para observar o escorço probatório e ver que, a rigor, trata-se apenas de palavra contra palavra. Toda a adução que o comitê faz é com base na capacidade de Evra de ser articulado e na incapacidade de Suárez explicar seus atos. Mesmo quando Evra sugere que Suárez adota um comportamento de infantilidade (Negro, negro, negro!) por simples pirraça, ainda assim, é aceito de forma acrítica.

Mais uma vez: somos incapazes de saber o que realmente se sucedeu entre Evra e Suárez. Suárez pode ter sido racista ou não, não há provas. Há indícios que eu considero fracos, mas cada um pode fazer seu juízo particular de credibilidade. A questão é que a FA, como instituição julgadora, inverteu todos os princípios jurídicos favorecendo o acusador. Fico curioso em saber se isso também acontecerá no julgamento do ex-capitão inglês, John Terry, que possui um vídeo em que ofende racialmente o zagueiro Anton Ferdinand. Se não usar da mesma assertividade – que eu acredito ser inclusive ilegal, dando ensejo inclusive a reparações por danos morais para Suárez (mais sobre isso no update abaixo) – para com Terry vai se confirmar o que se aparenta: que a rigidez da federação é seletiva, privilegiando times, passando inclusive por cima da honra de cidadãos e de princípios mais basilares do Direito.

 

UPDATE


“Qui croira à la justice de votre guerre si elle est faite sans mesure ?”

François de La Noue

O embrião deste longo post começou a ser elaborado assim que foi publicado o resultado do relatório da FA. A ideia era redigí-lo e postá-lo após o retorno de Suárez mas antes do jogo contra o United. Mas por compromissos da minha vida profissional acabei postergando um pouco e saiu depois do jogo. Dada a situação da abertura (e dos comunicados posteriores) achei por bem fazer mais um adendo. Peço sua paciência para ler um pouco mais. Ao final falarei um pouco sobre o tratamento que recebe hoje, na mídia e no esporte, a questão do racismo.

A situação que comento é da recusa de aperto de mãos de Suárez a Evra, na abertura do jogo Manchester United e Liverpool, pela Premier League, que gerou intenso debate internacionalmente.

Eu gostaria de aproveitar o ensejo para fazer uma breve digressão, até para retornar algo que talvez tenha ficado pouco explicado no post original. Trata-se da questão dos danos morais. No Código Civil brasileiro há a seguinte disposição:

Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.

Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.

Basicamente a norma diz que quem causar dano ou violação de Direito de alguém deve reparação. Mais detalhes podem ser vistos entres os artigos 927 a 948 do Código Civil. É isso o que diz a lei brasileira, na matéria civil. Já no âmbito penal, diz o Código Penal que:

Art. 138 – Caluniar alguém, imputando-lhe falsamente fato definido como crime:

Pena – detenção, de seis meses a dois anos, e multa.

§ 1º – Na mesma pena incorre quem, sabendo falsa a imputação, a propala ou divulga.

§ 2º – É punível a calúnia contra os mortos.

Art. 139 – Difamar alguém, imputando-lhe fato ofensivo à sua reputação:

Pena – detenção, de três meses a um ano, e multa.

Art. 339. Dar causa à instauração de investigação policial, de processo judicial, instauração de investigação administrativa, inquérito civil ou ação de improbidade administrativa contra alguém, imputando-lhe crime de que o sabe inocente

Pena – reclusão, de dois a oito anos, e multa.

§ 1º – A pena é aumentada de sexta parte, se o agente se serve de anonimato ou de nome suposto.

§ 2º – A pena é diminuída de metade, se a imputação é de prática de contravenção.

Em síntese, dizer que alguém cometeu um crime sem prová-lo, ofendendo sua dignidade, é, ao menos no Brasil, um crime.

Como falei anteriormente, me parece evidente que numa análise mais crítica do conjunto de provas apresentado pela FA a acusação de Patrice Evra sobre Luis Suárez não se sustentaria. Se manteve num painel de particulares, mas na esfera judicial Suárez dificilmente seria condenado por absoluta falta de provas. O fato de ninguém mais em campo servir como testemunha, e nenhuma câmera mais conseguir registrar qualquer coisa que sirva de prova é mais que suficiente para dizer que se houve algum racismo, não há como provar. Frise-se: pode ter havido racismo sim. Mas diante da inexistência de prova, só podemos condenar suposições, e isso equivale a condenar também os inocentes. Por isso que no sistema penal há sempre a presunção da inocência do réu. Por issoSuárez seria inocentado criminalmente.

Provavelmente talvez seja essa a razão de Evra não ter levado sua queixa à justiça comum. Saber que lá seria derrotado. E é importante notar que o próprio Patrice como a FA se esforçaram em diversas declarações afirmando que Suárez não é racista. Apenas acusam aqueles atos cometidos de terem sido atos racistas. Acaso tivessem diretamente apontado diretamente suas acusações estariam praticamente convidando os advogados do Liverpool a processá-los, pois certamente pois é razoável presumirmos que a reparação de dano na Inglaterra é semelhante à nossa. A ação de Evra, corroborada pela FA (provavelmente o processo chamaria Evra mas seria concedido somente junto à FA. Evra não tem culpa do relatório do processo, logo não deu causa à sua suspensão nem ao seu “julgamento” como racista, ele apenas denunciou) causou grave mancha à reputação de Suárez. Nossos locutores sempre lembrarão dele como um “imbecil”, “desequilibrado” ou chavões do tipo. Quantos desses comentaristas leram o processo é uma excelente pergunta que deixo em aberto.

No futebol nacional há outro episódio semelhante, o do caso Milly Lascombe v. Rogério Ceni. No programa Arena Sportv, ao vivo, a comentarista opinou, falando sobre o goleiro:

– “Eu não consigo, por exemplo, olhar pro Rogério e deixar de lembrar de quando ele falsificou a assinatura do Arsenal [equipe da Inglaterra], porque ele queria aumento no São Paulo.

Ele forjou um documento para que o São Paulo desse [o aumento].”

Imediatamente o goleiro entrou em contato com o programa e informou seu desacordo:

– “A opinião a respeito de um profissional pode ser positiva, negativa, é um direito que todos têm. Mas você dizer que eu falsifiquei uma assinatura no São Paulo é uma coisa que você vai ter que provar

– Eu aceito ser uma pessoa medíocre, eu só não aceito ser falso. Isso eu não sou. Eu sempre fui honesto. E se eu tenho a história que eu tenho [no São Paulo], é porque eu trabalhei pra isso.”

Rogério ajuizou ação por danos morais, creio eu, e também apresentou queixa-crime por calúnia contra a apresentadora. Os extratos do diálogo foram retirados do site de Cosme Rímoli.

O goleiro tricolor, se sentindo ameaçado em sua imagem, fez o correto: pediu para a acusadora apresentar suas provas em juízo. Se você acusa, deve ter como provar. Se não tem como provar, não acusa. Diante do juízo a comentarista simplesmente não tinha o que oferecer como prova. Rogério acabou ganhando a causa, tendo Milly sido condenada a pagar 60 mil R$ em indenização, e, após pedido de desculpas diante do juiz, teve a queixa-crime retirada pelo autor.

Voltando ao incidente em Old Trafford.

A questão do racismo tende a ser extremamente polarizadora. Fica a discussão entre os opositores do racismo e aqueles que parecem defender o racismo. Essa classificação não faz nenhum sentido. O racismo é um absurdo, mas a dificuldade com a qual é tratado até hoje demonstra como permanece sendo um esqueleto no armário, não só das famílias de classe média, ou das chamadas “classes trabalhadoras”. Até mesmo os “formadores de opinião” às vezes se perdem em como reagir ao caso: como impedir o racismo persistente em nossa cultura?

Diante dos fatos expostos, eu, na posição de Luis Suárez, me sentiria dividido. Por um lado me sentiria profundamente injustiçado pela FA e por Evra, por outro me sentiria em dívida com a imagem do meu empregador e a campanha – necessária – de repulsa ao racismo. Era preciso dar exemplo, e, claro, demonstrar Fair Play: entender que no esporte há coisas muito mais relevantes e importantes que o que rola dentro de campo.

Na minha opinião Suárez estava condenado de princípio. Se apertasse a mão de Evra selaria seu status de criminoso arrependido, faria as pazes com a mídia, deixando apenas uma mancha menor em sua carreira. Mas que ainda seria uma mancha. Se não apertasse – como não o fez – receberia reprimendas públicas de todas as fontes possíveis, e reforçaria seu estigma de racista. Estigma que provavelmente o acompanhará por muito tempo. É um Ardil 22, um jogo sem possibilidade de vitória.

O que eu teria feito? Denunciado civil e criminalmente ambos Evra e a FA, pedindo que fornecessem em juízo suas provas. Lá seria (talvez) inocentado. Mas a FA seria alvo de investigação da justiça comum, algo que a FIFA proíbe. Seria criado um precedente perigoso, o de recurso à justiça comum por ato intra-campo. Parte do público teria a impressão que o racismo foi acobertado, na certa. Acirraria ainda mais os ânimos entre as duas torcidas mais vitoriosas do país.

Ou seja, ainda esse seria um resultado ruim. Não há resultado bom possível. Ao não recorrer em defesa de Suárez os advogados do Liverpool – talvez a pedido do clube, desesperado querendo que a poeira baixe logo – deixaram implícito que o clube aceita a condenação, por mais que deixem explícito o contrário. Tempos sombrios, tempos sem respostas.

Um PS: não confundam legalidade com legalismo. Exigir o cumprimento das leis não é advogar pela leniência. Racismo deve ser combatido, mas, como diz nossa epígrafe, qual é essa justiça que é feita de forma desmedida?

PS2: Tive o cuidado de pedir ajuda na revisão a alguns amigos também da área jurídica, inclusive torcedores do Manchester United. Agradeço pela cooperação especialmente a Eduardo Caixeta, torcedor fiel e, como não poderia deixar de ser, adversário fiel e grande amigo.

PS3: Como tinha dito quando o post foi escrito, vejam a justiça da FA: Terry em caso de racismo com provas, Suárez em caso de agressão sem dano

Sobre Wagner Artur Cabral

filosofia política e futebol
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Uma resposta para Uma pausa: Caso Suárez-Evra (com update)

  1. Andre Vitor disse:

    Artigo muito completo e ponderado. Entretanto vemos agora que, independente desse caso, estamos diante de um indivíduo sem equilibrio. Já soma 40 jogos de punição por indisciplina. Não há mais como defendê-lo, ainda que não hajam santos no futebol, menos ainda Evra e Chiellini.

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